Reportagem por Alice Martins Morais

Quando Patrícia Socorro era criança, atravessava a ponte de miritizeiro que dividia a rua onde até hoje mora, em Belém (PA), e passava as tardes brincando no rio Tucunduba, nome que em tupi-guarani significa “o lugar onde crescem estas palmeiras”. Agora aos 50 anos, a paisagem mudou tanto que parece que é outro lugar. Sufocado pelo concreto, o Tucunduba agora é um canal que quase não aparece mais no mapa e pouco tem árvores nas margens.
Ele é o maior rio urbano e faz parte da segunda maior bacia hidrográfica de Belém. Localizado na periferia, o Tucunduba passa por cinco grandes bairros, como o de Patrícia: Terra Firme, onde vivem mais de 61 mil pessoas. Sua casa está a 15 minutos a pé de uma das principais instituições científicas da Amazônia, o Museu Paraense Emílio Goeldi, e a 10 minutos de carro da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde em novembro deste ano programações paralelas da maior conferência global sobre mudanças climáticas vai acontecer, a COP30.
Mas ali, na rua Cipriano Santos, apesar de próximo da chamada “Perimetral da Ciência”, as respostas para os desafios da periferia pouco parecem priorizar soluções baseadas na natureza (SBN). Com a canalização do rio nas últimas décadas, a população passou a sofrer com alagamentos constantes e déficit no saneamento básico – já que o esgoto deságua ali. A situação só foi melhorar nos últimos anos, quando a Bacia do Tucunduba foi contemplada por uma recente macrodrenagem que custou mais de R$ 780 milhões e entrou na lista de obras da COP.
Para Patrícia, como para outros moradores, é inegável que a obra melhorou a qualidade de vida e, principalmente, o trânsito de veículos, mas ela diz que sente falta de ter mais verde, como tinha antigamente, e que gostaria de ver o rio ser revitalizado. “Seria muito bom se tivessem aproveitado a obra para fazer uma pracinha para as crianças, ter espaço para plantar”, acredita. É por isso que resolveu tomar a iniciativa de fazer um pequeno jardim na beira do canal, com vasos de plantas que ela mesma cultiva. “Todo dia eu cuido delas. Aprendi com a minha mãe, que antes cuidava do pé de jambo e das árvores que tinha por aqui”, lembra.
Um Tucunduba mais verde, como Patrícia sonha, começa a ser construído apenas em trechos específicos, na avenida que leva o nome do rio. Ali, ainda se vê preservada parte da vegetação anterior e a Prefeitura de Belém iniciou um projeto-piloto de arborização nas margens, com o plantio de 500 mudas de espécies nativas como açaizeiro e pau-preto. A ação foi anunciada em março de 2025, em parceria com a Associação Defensores do Rio Tucunduba e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), para combater o assoreamento e promover conforto térmico.
A arborização é um dos desafios da Amazônia Urbana, parte da região onde a maioria (76%) da população reside. “A infraestrutura urbana da Amazônia também é pior que do restante do país. Para melhorar a qualidade de vida da população e reduzir o êxodo da região, é preciso investir em serviços”, informa o estudo “As 5 Amazônias“, do projeto Amazônia 2030. Para se ter uma ideia, apenas 17% da população têm acesso à rede de esgoto, enquanto a média nacional é de 52%.
No centro, parques. Na baixada, canais
Considerando as desigualdades de qualidade de vida que a Amazônia já possui em relação ao restante do país, lideranças entrevistadas para esta reportagem consideram que o esforço para sustentabilidade ainda é exceção nas baixadas – conceito usado localmente para falar de periferias, como favelas, mas que estão em áreas de terreno baixo e alagadiço.
Em contraponto, num dos metros quadrados mais caros de Belém, outra obra de drenagem em canal tem um caráter bem diferente. Na avenida Visconde de Souza Franco, conhecida como Doca, um investimento de R$ 310 milhões incluiu a despoluição do rio e a construção de um parque linear – indo bem além da pavimentação. “Quando falamos de COP, não tem como não pensar na diferença das obras da periferia para o centro da cidade. Se na Doca tudo é planejado pensando na convivência saudável dos moradores, nas periferias os espaços de lazer e de verde são em áreas residuais, as pessoas que vão dando um jeito”, avalia a arquiteta e urbanista Amanda Ferreira.
Ela é diretora de arte e membro-fundadora da organização sem fins lucrativos Mandí, que incentiva a participação social na gestão de águas de Belém, oferecendo formações voltadas às juventudes periféricas. “O que a gente percebe é que, por mais que o rio seja canalizado, as pessoas continuam ocupando. Fazem da beira a extensão da sua casa, seja para estender uma roupa, fazer um jardinzinho, se reunir com os amigos no final de semana. Continuam tendo uma ligação com o rio, mesmo que o processo de urbanização tente ignorar isso”, destaca.
Entre as ações centrais da Mandí, estão as expedições pelos rios de Belém, realizadas desde 2017. De acordo com Amanda, a ideia dessa experiência nasceu quando ela e colegas refletiam sobre como o rio Tucunduba, que ao mesmo tempo em que passa pela Universidade Federal do Pará, em outras partes da cidade está canalizado. “É o mesmo rio, que assume diferentes formas”, reflete.
Ela conta que principalmente os mais jovens ficam surpreendidos quando percebem as intervenções urbanas. “Eles já cresceram vendo o rio canalizado, como esgoto, enquanto os mais velhos ainda têm lembranças de tomar banho e brincar nesse rio. A gente vê esse choque e eles percebem na pele também a diferença de um espaço como esse, preservado, que venta, tem sombra, tem a vegetação nas margens, em contraste com um canal, concretado, sem cobertura”, menciona Amanda, enquanto contempla o rio livre, na ponte da universidade.
Ao longo dos anos, mais de 20 expedições foram feitas e Luciana de Souza foi uma das educadoras que participou. Engenheira Sanitarista e Ambiental de formação, ela é professora de Ensino Tecnológico Profissionalizante do Pará. Nascida e criada no bairro do Guamá, onde o Tucunduba também passa, o rio fez parte de sua infância e agora pode ser usado como objeto de estudo em sala de aula. “Nesse primeiro momento, a expedição foi para formação dos professores, não tivemos alunos. Nós discutimos sobre uso e ocupação do solo, saneamento, racismo ambiental e justiça climática”, diz.
Professores de diferentes áreas puderam trocar experiências e conhecimentos sobre bacias hidrográficas, recursos hídricos, lançamento de efluentes, resíduos sólidos e infraestrutura urbana. Os debates ajudaram a professora nas suas classes. “É importante levar essa realidade para dentro de sala de aula. Pudemos observar que tem muitos alunos que também moram próximos a canais e puderam dar seus relatos. A partir da metodologia das expedições, consegui fazer adaptações em classe, fazendo com que o processo de ensino-aprendizagem para esse conteúdo fosse significativo”, conclui.
“Se dependesse da gente, teria parques lineares de dar inveja à Doca”
Francisco Batista, conhecido como Zeca da TF, é uma liderança comunitária emblemática no bairro Terra Firme (por isso, o TF em seu codinome). Ele é fundador de movimentos sociais como o coletivo Tela Firme e o Chalé da Paz, um espaço de acolhimento comunitário às margens do Tucunduba que fará parte da rota da COP das Baixadas. “Durante muito tempo, foi um bairro estigmatizado, o pessoal dizia ‘Me rouba logo’ quando dizia que ia para a TF”, relata. A expressão paraense a que ele se refere é usada comumente para um lugar que se considera muito perigoso.
De acordo com Zeca, a despeito do preconceito, a história do bairro passa por muitas lutas e organização popular, seja por acesso à moradia, água, ensino básico, posto de saúde, dentre outros direitos. Quando a mídia nacional começou a repercutir as obras da COP30 e destacaram as mazelas de saneamento das periferias, ele denunciou a falta de visibilidade do empoderamento das baixadas. Zeca aponta que, se dependesse de bairros como Benguí, Terra Firme, Tapanã, Guamá, Cabanagem e Jurunas, Belém já teria obras integradas com arborização, espaços de lazer e até áreas para pequenos empreendimentos da economia solidária.
Ele lembra que projetos semelhantes aos parques lineares hoje em implantação no centro da cidade foram propostos pelas comunidades há décadas. “Se dependesse da mobilização e da organização popular, nós teríamos obras maravilhosas que dariam inveja até aos parques lineares da Doca e da Tamandaré”, declarou, em vídeo, ainda em junho. As propostas pensadas pelas periferias não se resumem à macrodrenagem do Tucunduba, como foi feito, mas incluem corredores culturais e ambientais, criação de ecopontos e isenção de contas de água para moradores em situação de vulnerabilidade.
Ao ser questionado sobre que legado a COP deixa, Zeca analisa que, por um lado, é positivo que se intensificou o debate local sobre mudanças climáticas. Por outro lado, se perdeu a oportunidade de incluir a organização popular nos projetos, na prática. “As iniciativas propostas para cá foram feitas com quase nenhuma participação popular. E essa sustentabilidade tem que partir das obras de infraestrutura urbana, que para a periferia tem sido basicamente concreto e não se pensa nas interações. Antes, quando não tinha esse canal aqui, era arborizado, tínhamos uma pracinha, agora foi tudo destruído”, recorda.
“O urbano não pode ser visto na paisagem somente como um bando de aglomerado, de concreto, tem que buscar uma qualidade de vida. E como essas obras seriam melhor aproveitadas para a população são os próprios moradores que precisam dizer. Para mim, seria resgatar a relação que perdemos com o rio”, reitera Zeca.
Uma nova forma de tratar o esgoto, preservando os rios
A poucos metros de distância do Chalé da Paz, está outro importante ponto cultural e comunitário da Terra Firme: o barracão da Associação Cultural Amazônica Boi Marronzinho. Fundado em 1993, a iniciativa nasceu como uma brincadeira de quatro amigos para resgatar o típico boi-bumbá em meio ao enfraquecimento das tradições locais e à falta de políticas públicas no bairro. Hoje, é um espaço de mobilização social, ligado a causas como direito à cidade, educação, sustentabilidade e segurança alimentar. E esse foi o ambiente escolhido como piloto para o programa Periferia Viva, da Secretaria Nacional de Periferias, do Ministério das Cidades.
Desenvolvida pelo Laboratório Saber e Conviver, da UFPA, a iniciativa está implementando três tipos de soluções baseadas na natureza (SBN) no barracão do Boi: fossa ecológica, teto verde e sistema de captação de água da chuva. A fossa é um tipo de BET (Bacia de Evapotranspiração), conhecida carinhosamente no local como Betinha, ou como fossa de bananeiras. Esse tratamento inverte a lógica-padrão que destina o esgoto das casas até os rios. Funciona assim: o esgoto do vaso vai para uma bacia fechada e impermeável, instalada depois de camadas de areia, pneus e outros substratos, que servem como barreira e filtro no solo. Lá dentro, as bactérias decompõem a matéria orgânica e as plantas na superfície absorvem água e nutrientes. Em vez de poluir o solo ou o lençol freático, a água volta para o ambiente em forma de vapor, sem cheiro nem sujeira. O que sobra vira adubo natural, que ajuda no crescimento de plantas como bananeiras, que se desenvolvem rápido e ainda podem ser consumidas.


“É uma tecnologia social acessível que transforma os resíduos humanos em nutrientes para plantas e a água sai por evapotranspiração”, explica a engenheira sanitarista e ambiental Giovanna Aires, uma das pesquisadoras participantes, sob a coordenação de Myrian Cardoso. “Tudo que usamos nesse projeto foi reaproveitado ou adquirido localmente. Os pneus pegamos de oficinas locais, a terra com adubo veio de um morador da Terra Firme”, acrescenta.
De acordo com Giovanna, além de oferecer uma solução para a associação cultural, as SBNs estão servindo como um laboratório vivo para pesquisadores e a própria comunidade irem testando o que funciona ou não. “Tem, por exemplo, umas cascas de frutas que estamos jogando para ver se vão ajudar na compostagem, sementes que estamos experimentando se vão germinar”, explica.
Já o teto verde tem a finalidade de trazer maior conforto térmico ao próprio banheiro. Como a telha absorve calor do Sol, as plantas que estão em vasos feitos de garrafas PET servem de cobertura natural. No momento, estão testando espécies paisagistas, doadas pelo Espaço ITEC Cidadão, um projeto conhecido como Bosquinho da UFPA. “Se há uma ideia de que se precisa concretar tudo, vamos na contramão: a gente tem que procurar soluções verdes, sustentáveis”, defende a engenheira. A captação da água da chuva ainda está em estado inicial, mas o objetivo é usar caroço de açaí, um resíduo abundante da cidade, que têm a capacidade de filtrar impurezas.
Apesar de se basear em metodologias já comprovadas cientificamente, a aplicação dessas SBN, em especial a Betinha, causaram estranheza na comunidade. “Até quem faz parte do Boi Marronzinho teve uma certa resistência. Os pedreiros também que vieram para as oficinas de formação, antes de começarem a trabalhar na obra, não acreditaram na ideia”, lembra o Mestre de Cultura Joelson Ataíde, amo do Boi Marronzinho há 32 anos.
Conforme foram vendo o plano sair do papel, todos começaram a abraçar as SBN e agora até as crianças que fazem reforço escolar na associação estão sendo treinadas para poderem explicar para os visitantes como a Betinha funciona. “Queremos não só que funcione para nós, mas que seja tipo uma vitrine, que as pessoas possam visitar e aprenderem que tem essa alternativa”, conta Joelson.
Entre universitários, comunidade e membros do Boi, por volta de sessenta pessoas estão envolvidas no projeto. O Periferia Viva também contempla outros pontos de Belém, como no bairro da Cabanagem, e está presente em outras cidades do Brasil – mas neste caso, sob outras coordenações.
“Esse tipo de iniciativa acaba preenchendo as lacunas de obras públicas da COP que, infelizmente, não chegaram até a Terra Firme. Eu vejo isso com muita tristeza, porque, por mais que a gente esteja ganhando um projeto tão bom como esse, sabemos que é uma exceção. A COP poderia ser um marco na nossa vida de amazônida, mas pouco está se fazendo para isso na periferia”, declara Joelson.
Fonte/Créditos: Reportagem por Alice Martins Morais


Comentários: