Sexta-feira, 24 Outubro de 2025 - 15:24 | Por Ingrid Valerie
O gesto, o de guardar o próprio tablet pessoal, foi interpretado como furto. A loja, que publicou o vídeo nas redes sociais, apagou o conteúdo horas depois. Mas era tarde demais.
“Estávamos comprando alguns artigos de decoração para o acampamento da igreja. Em nenhum momento ninguém nos abordou na loja em busca do objeto, apenas soltaram o vídeo nas redes sociais. Horas depois, alguns conhecidos compartilharam o material com a gente nos alertando da situação. Foi um choque. A gente se sentiu oprimido e exposto”, relembra o genro, que também estava na loja.
Quando a mentira vira humilhação
Casos assim se multiplicam nas redes, onde a pressa por curtidas fala mais alto que a responsabilidade. Em 2022, outro morador da cidade também viu sua imagem se tornar um espetáculo público. Ele dormia na calçada, em frente à própria casa, quando uma micro influenciadora do ramo imobiliário passou, gravou a cena e publicou com a legenda: “Olha o que a cachaça faz.”
O episódio transformou o momento de descanso em piada e a imagem em chacota.
Em poucas horas, o vídeo atingiu mais de 100 mil visualizações ao ser compartilhado no perfil de outras redes sociais da cidade.
O que parecia uma “brincadeira” virou uma avalanche de julgamentos, tudo sobre alguém que sequer sabia estar sendo exposto. A advogada Andreia Godoy, que acompanhou o caso, explicou que a Justiça reconheceu que o vídeo violava a honra e a imagem do homem, e que nenhuma piada pode justificar a humilhação. “A desinformação mais perigosa é a que se disfarça de humor. A sociedade ainda não entendeu que a exposição injusta também é uma forma de violência.” Afirmou.
O caso mostra, além da disputa judicial, o retrato de um sofrimento silencioso: o de quem passa a ser reduzido a um meme. Entre constrangimento, vergonha e olhares atravessados, a sensação de anonimato virtual muitas vezes leva as pessoas a agir sem medir as consequências, esquecendo que por trás de cada imagem existe uma vida, uma história e uma dignidade que merecem respeito, explicou a advogada.
A mentira que viraliza
Os casos se repetem, cada de uma forma, mas todos nascem do mesmo fenômeno: a desinformação. O termo “fake news”, popularizado na última década, já não dá conta de tudo o que se espalha nas redes. Não se trata mais de boatos ou manchetes fabricadas, mas de encenações planejadas para gerar repercussão.
Há poucos meses, um criador de conteúdo de Rondônia simulou ter deixado uma bomba no aeroporto de Porto Velho. A “brincadeira” mobilizou a Polícia Federal, interrompeu voos e gerou pânico entre passageiros. Era tudo mentira. Mas a mentira funcionou e em poucas horas, o perfil do influenciador viralizou.
Casos assim definem um novo tipo de desinformação: a fake news performática, aquela que simula acontecimentos para gerar engajamento, explorando a lógica emocional e imediatista das redes.
A mentira agora tem rosto e código
Com o avanço da inteligência artificial, as falsificações digitais ganharam poder e velocidade inéditos. Em 2024, a estudante Rafaela Bomfim, de 21 anos, descobriu que fotos comuns do seu Instagram haviam sido transformadas em “nudes” falsos e publicadas em um site adulto. As imagens, criadas por Inteligência Artificial, pareciam reais e foram compartilhadas milhares de vezes, acompanhadas de comentários ofensivos.
Casos como o dela ilustram uma nova etapa da desinformação: a mentira fabricada por tecnologia, que mistura aparência de verdade com precisão algorítmica. Hoje, qualquer pessoa pode se tornar vítima de um conteúdo inexistente, criado e disseminado em poucos segundos por sistemas automáticos. A mentira ganhou corpo digital, e o dano continua sendo humano.
Quando a Justiça tenta acompanhar o algoritmo
Segundo pesquisa do DataSenado (2023), 91% dos brasileiros acreditam que as fake news representam risco à sociedade e 72% dizem estar muito preocupados com a quantidade de desinformação nas redes. Especialistas explicam que as chamadas “fake news” são apenas a face visível de um fenômeno mais amplo: a desinformação.
Ela pode nascer por descuido, ser fabricada com intenção de manipular ou até usar fatos verdadeiros fora de contexto. Algumas são motivadas por interesse político ou financeiro, outras pela busca por engajamento. O resultado é o mesmo: uma mentira bem contada, feita para confundir e muitas vezes ferir.
O advogado e professor de Direito Digital, Iago Capistrano Sá, explica que o dano moral causado por publicações em redes sociais é plenamente indenizável. “A Constituição garante o direito de resposta e indenização, e o Código Civil autoriza reparação quando a exposição atinge a honra, a boa fama ou tem fins comerciais.” Segundo ele, o desafio está em responder com rapidez sem abrir mão da liberdade de expressão. “A desinformação se espalha em segundos, e o sistema jurídico ainda age em ritmo analógico.”
A Justiça vem reconhecendo a gravidade dos danos morais digitais, mas o ritmo ainda é desigual. Enquanto o processo leva meses, o vídeo viraliza em segundos. “A desinformação se propaga de forma algorítmica e transnacional. É preciso identificar os autores, preservar provas tecnicamente válidas e remover conteúdos sem promover censura excessiva”, explica Iago Capistrano.
A advogada Andreia Godoy complementa que o Judiciário brasileiro vem se posicionando de forma cada vez mais firme contra abusos cometidos nas redes sociais. “A liberdade de expressão é um direito fundamental, mas não é absoluta. Ela encontra limite na dignidade humana”, afirma.
No caso de exposição que a advogada defendeu, a juíza considerou que a gravação e a postagem ultrapassaram o aceitável ao sugerir que ele estivesse embriagado, sem qualquer base factual. A sentença reconheceu o dano moral e a responsabilidade solidária de quem gravou e de quem republicou o vídeo. “Essa interpretação reforça que o ambiente virtual deve seguir os mesmos princípios éticos e jurídicos da vida fora das telas”, explica Andréia.
A trajetória da vítima durante o processo foi marcada por intenso sofrimento emocional e constrangimento social. Ao descobrir o vídeo, ela se sentiu profundamente envergonhada, especialmente por ver sua imagem usada de forma desrespeitosa em uma publicação que buscava apenas gerar engajamento e risadas às suas custas. O impacto foi imediato: no trabalho, entre amigos e familiares, precisou lidar com comentários e olhares decorrentes de uma exposição pública que não havia consentido.
Essa experiência evidencia o quanto o comportamento irresponsável no ambiente digital pode causar danos reais e duradouros. A sensação de “anonimato virtual” muitas vezes leva as pessoas a agir sem medir as consequências, esquecendo que por trás de cada imagem existe uma vida, uma história e uma dignidade que merecem respeito. O episódio também chama atenção para o papel das plataformas e dos usuários na contenção da viralização de conteúdos ofensivos.
A decisão judicial foi mais do que uma reparação individual: foi uma mensagem social de que a internet não é um espaço sem lei. A proteção da honra e da imagem deve prevalecer, e o exercício da liberdade de expressão deve sempre ser pautado pela responsabilidade e pelo respeito ao próximo. Por trás de cada vídeo compartilhado existe alguém tentando reconstruir a própria imagem. A linha que separa o entretenimento da humilhação ficou turva.
A era da mentira em cartaz
A era digital transformou a mentira em espetáculo. O palco é coletivo, o script é improvisado e o público está sempre presente. Cada curtida vira aplauso; cada compartilhamento, uma nova cena. E enquanto a desinformação brilha sob os refletores, a verdade segue nos bastidores, esperando a sua vez de entrar.
A mentira só se sustenta porque encontra plateia. Combater a desinformação é um dever coletivo. Ela se fantasia de notícia, de piada, de denúncia ou de tecnologia, e se alimenta da pressa de quem compartilha antes de pensar.
O desafio não é apenas jurídico, mas também jornalístico, ético e cultural: repensar o papel de quem informa e o cuidado de quem compartilha. Porque, por trás de cada publicação, há alguém sendo observado, por vezes julgado ou ferido. E, por trás de cada tela, alguém tentando continuar a vida depois de ter sido reduzido a um post.
Vivemos um tempo em que a responsabilidade deixou de ser apenas de quem informa, e passou a ser de quem compartilha. Ter cuidado não é censurar: é reconhecer que a verdade ainda precisa de palco, mas o respeito deve ser o protagonista.
Fonte/Créditos: | Por Ingrid Valerie

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