Por Samuel Hanan
Ao se referir a governos, o economista e escritor norte-americano Harry Browne (1917/1986) disse que o governo é bom em uma coisa.
“Ele sabe como quebrar as suas pernas, apenas para depois lhe dar uma muleta e dizer: se não fosse pelo governo você não seria capaz de andar”.
Esse ponto de vista pode parecer raivoso ou exagerado, porém nos faz pensar e analisar a questão sob a ótica do Brasil.
Observando o resultado do governo brasileiro nos últimos 34 anos – período em que o povo elegeu de forma democrática, por meio do voto direto, cinco presidentes da República de diferentes partidos políticos e matizes ideológicas (do PT, do PSBD, do extinto PRN e do PL) além de governadores, prefeitos e membros do Congresso Nacional –, constata-se que nenhum dos eleitos teve a preocupação de enviar projetos de Lei visando justiça tributária, fundamental num país em que o Executivo arrecada muito em impostos pagos pela população e devolve pouquíssimo em bem-estar social a esses contribuintes.
Não houve, nessas três décadas, leis que obrigassem o chefe do Poder Executivo a fazer a correção anual (pelo índice inflacionário acumulado nos 12 meses anteriores) das tabelas de Imposto de Renda, das aposentadorias e das pensões concedidas pelo Regime Geral da Previdência Social.
Tributar a inflação significa penalizar duplamente o contribuinte, porque a não-correção retira renda efetiva, enquanto a inflação enfraquece o poder de compra.
São milhões de brasileiros que dependem desse pagamento para viver e que perdem o poder de compra ano a ano em razão do crescimento da inflação.
O Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal-Sindifisco, em matéria publicada pelo site Globo.com em janeiro de 2024, mostrou que a defasagem das tabelas do IR era da ordem de 149,56%.
Agora, com a correção feita pelo Senado, essa defasagem caiu para 99,65%, percentual que se fosse corrigido elevaria a isenção do Imposto de Renda para pessoas com remuneração de até R$ 5.638,11/mês.
Ou seja, alcançaria 95% da população brasileira. Esse sim seria o maior projeto social do Brasil – superior ao Bolsa-Família – e garantido por lei.
Nesse período de pouco mais de três décadas, os governos brasileiros tampouco foram sensíveis à agonia diária de 122 milhões de cidadãos cuja renda mensal não ultrapassa um salário mínimo (hoje R$ 1.412,00/mês bruto e R$ 1.306,10/mês líquidos, equivalente apenas e tão somente US$ 126,00/mês) de modo a preservar e aumentar um pouco o valor de sua forma de sobrevivência.
A falta de receita não pode ser usada como causa impeditiva porque nesse período a carga tributária aumentou 50% (passou de 22,5% para 33,5% do PIB).
Os governos também tiveram tempo de sobra (mais de 30 anos) para elaborar soluções e se tivessem apresentado propostas legislativas para entrar em vigor em 5, 10 ou até 20 anos, hoje tudo já estaria resolvido.
A situação perdura, porém uma nova oportunidade se abriu agora, com a reforma tributária a ser enviada ao Congresso Nacional ainda este ano e já amplamente debatida.
Mas por que nada foi feito? Insensibilidade? Incompetência? Talvez nada disso.
A resposta passa pelo pensamento de Harry Browne sobre o governo.
O fato é que os governantes “quebraram as pernas” da imensa maioria da população ao não corrigirem as tabelas do IR, das aposentadorias e das pensões e ao não praticarem justo reajuste de salário- mínimo para garantir a esses cidadãos brasileiros maior poder de compra e para tornar um pouco mais leve aos ombros dos trabalhadores o peso dos aumentos da carga tributária e dos preços.
Basta lembrar que após a promulgação da Constituição Federal de 1988, poderiam ter reduzido (ou até excluído) a incidência de impostos sobre os gêneros de primeira necessidade, de maior impacto sobre os mais pobres.
No entanto, a opção foi outra: a de entregar “muletas” por meio de “benefícios sociais” como o Bolsa-Família, vale-gás, vale-dignidade menstrual e outros, que apenas mantêm os mais pobres sob dependência, sem dar solução definitiva ao problema.
São medidas de caráter paliativo, que nao resolvem o problema e escravizam a população, além de não possuírem garantia alguma – vez que dependem da decisão do governante de plantão – e que não são capazes de dar dignidade à vida das pessoas. Nesse caso, é bom lembrar o que escreveu o filósofo norte-americano John Kenneth Galbraith (1908-2006):
“Nada estabelece limites tão rígidos à liberdade de uma pessoa quanto a falta de dinheiro”.
Os governos também falharam inapelavelmente na questão da redução das desigualdades regionais e sociais.
A questão é igualmente grave, como apontam os dados oficiais. A renda anual per capita dos habitantes dos 16 estados das regiões Norte e Nordeste até hoje é 36% inferior à média nacional.
Temos, portanto, dois Brasis dentro de um só território.
Uma das consequências diretas disso é que no Norte e Nordeste o número de beneficiários do Bolsa-Família ultrapassa o número de trabalhadores com carteira assinada em mais de 4 milhões de pessoas.
Naqueles estados, o número de brasileiros que têm emprego ou exercem outras atividades econômicas com carteira de trabalho assinada é também muito díspar (para menos) em relação as moradores de outros estados.
A grave anomalia é ainda evidenciada pela discrepância do posicionamento do Brasil no ranking das maiores economias do mundo (9º lugar) e no ranking per capita/ano (69ª posição) o que evidencia a má distribuição de renda.
Tudo a demonstrar que as riquezas produzidas pelo país estão longe de refletir na qualidade de vida da sua população.
A situação está a exigir maior transparência e garantia da dignidade dos cidadãos, assegurando-lhes mais direitos e menos favores oficiais.
Um exemplo bastante singelo comprova essa assertiva. Basta perguntar a um pai de família o que lhe dá mais satisfação: chegar em casa com uma bola ou uma boneca de presente para seu filho ou filha e dizer “papai comprou com a economia do salário” ou afirmar que “papai ganhou do prefeito/governador/deputado”? Qual das situações o fará sentir mais digno?
As maldades, a insensibilidade e a incapacidade de governar para todos bloqueiam a verdadeira cidadania e corroem o respeito e a dignidade humana. As “muletas” podem trazer algum alívio momentâneo, porém simbolizam fracasso e falta de perspectiva. Tudo o que o brasileiro não merece.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
Fonte/Créditos: Por Samuel Hanan
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